Ensaios Filosóficos

Brados e Sussurros

Se não bradarmos nossas paixões, jamais sussurraremos nossos amores. (Ref.)

Em Esqueceram de Mim 2: Perdido em Nova York, Kevin McCallister conversa o seguinte com a moradora de rua interpretada por Brenda Fricker (trecho):

— [...] Mas o homem que eu amava um dia deixou de me amar. Fiquei desiludida. E quando a chance de ser amada surgiu outra vez... eu evitei e fugi. Deixei de confiar nas pessoas.

— Não se ofenda comigo, mas, pelo que me disse, parece uma atitude burra.

— Eu tinha medo de ser decepcionada de novo... Às vezes a gente confia numa pessoa, e só depois percebe que ela esqueceu de você.

— Talvez ela só esteja ocupada. Talvez não esquece da senhora. Talvez só esquece de lembrar da senhora. As pessoas não esquecem por mal. É uma coisa que acontece. Meu avô sempre dizia que se minha cabeça não fosse grudada, eu esqueceria no ônibus da escola.

— Eu tenho medo de confiar em alguém e voltar a sofrer.

— Eu entendo a senhora. Uma vez eu ganhei um par de patins que era uma beleza. Mas fiquei com medo de usar (pra não gastar). Então deixei-os guardados. Sabe o que aconteceu?

— Não.

— Eu cresci demais. Não cheguei nem a sair com eles, só usei no meu quarto umas duas vezes.

— O coração e os sentimentos de uma pessoa são diferentes de patins.

— São mais ou menos a mesma coisa. Se não vai usar o seu coração, que mal faz ele partir ou não? Se guardar para si mesma, ele pode acabar como os patins. Quando a senhora resolver usar, não vai mais adiantar. Devia correr o risco. Não tem nada a perder, não é?

— Há uma certa verdade nisso.

— Eu acho que é... Seu coração pode estar partido, mas não está morto. Se estivesse, não seria boa como eu.

— Obrigada.

O que podemos tirar de tudo isso? Não há como relacionar todas as partes do diálogo em questão, mas podemos partir dele para explorar o tema deste ensaio. O tópico central aqui é «esquecer de lembrar». O que exatamente nos faz esquecer de lembrar daquilo ou daqueles que amamos? E que efeito o esquecimento tem em nosso espírito? E mais, o que seria o próprio espírito, nesse caso?

O espírito é o princípio imaterial de uma pessoa, sua alma. Digamos deste um "ser superior", cuja razão de vida transcende a matéria. O espírito é o sopro da vida, a vontade atemporal que surge ao fazermos parte integral do espaço. O espírito necessariamente implica a consciência numa escala bi ou, em raros casos, tridimensional. Ou seja, um indivíduo sempre terá consciência ativa sobre seus sentimentos e ideias, mas rara­mente se entenderá por seu corpo, que costuma ser, inclusive negligenciado. Justa­mente no corpo é que ocorre a doença que limita a essência de nosso ser: a doença do adormecimento, da inércia psicoespiritual (e aqui faço referência ao Eneatipo IX).

A inércia psicoespiritual é um efeito do esquecimento sobre o corpo. E vale notar: para algumas pessoas, o corpo surge de dentro, e para outras, surge de fora. Chamaremos a estes, respectivamente, de intuitivos e sensoriais. Esquecendo-nos daquilo que amamos, observo, necessariamente esquecemos da parte de nós que está, por essência, atrelada àquele amor. Isso ocorre porque o amor é uma fusão, um complemento. Toda separação implica uma ferida, a perda de uma parte própria. Por sua vez, essas feridas podem ser curadas e tornar-se mais fortes, ou ainda podem sofrer de dores fantasmas, bem como podem ser menosprezadas e esquecidas. Esquecer, portanto, não nos faz mais fortes nem mais confortáveis, apenas mais adaptados e, notadamente, menores em nossa grandeza.

Mas o que exatamente nos leva a perder partes de nós mesmos? O que nos faz esquecer de nossos amores, tornando-nos cada vez mais inertes em nossa vida corporal? Talvez porque fomos suprimidos, porque fomos maltratados, ou porque fomos rejeitados e não levados a sério, perdemos nossa vontade original. A maturidade, no entanto, é perceber que vivemos de medos, vícios e preguiças. Reconhecer o próprio corpo é reconhecer as próprias necessidades e desejos pessoais num sentido justo, moderado e firme. Pessoas motivadas são capazes de mover o mundo, de se adaptar, de desfrutar dos prazeres da vida e de entender os limites das relações. Amadurecer é aprender a ouvir e dar voz à criança interna que tanto assassinamos e tentamos congelar. Às vezes essa criança foi agredida e endureceu, tornando-se mármore enquanto se afogava em seus joelhos e suava frias chamas ressecadas e esfumadas. Tudo aquilo que rejeitamos e negamos em nós, aquilo que vai contra a imagem social que nos "defende" da coerção e da dor emocional — a isso Jung chamou de Sombra.

Quando esquecemos de nós mesmos, ocorre porque lançamos nossa criança à sombra. A criança são os amores, as verdades e vontades de uma pessoa. O adulto, por sua vez, sendo este a imagem que frequentemente adotamos diante dos outros, é nossa máscara. Sobre o adulto, projeta-se uma luz de falsidade, aversão e preguiça. Não há verdades num adulto, apenas orgulhos e egocentrismo. Aquilo que nos move, que nos anima, é nossa criança interna, dotada de paixões, necessidades e desejos. O mundo é sempre fascinante para a criança, então por que o adulto vira suas costas para ela em vez de doar alguma luz? A verdade é que o adulto teme as chamas em suas infinitas cores. Ser maduro é ter labaredas. A reação que uma criança tem à luz é queimar, arder genuinamente em seu amor. Sem a luz, ela se remói viscosamente. O adulto, por sua vez, sem a sombra, não tem descanso. Lembrar de si mesmo é alternar entre criança e adulto.

Sintetizando essas reflexões, temos que esquecemos daquilo que amamos, em geral, porque não temos força o suficiente para valorizar nossa própria presença. Não entendemos os valores do nosso corpo, e por isso nosso espírito sofre uma morte térmica — falece de frieza. Há um desbalanço entre o fogo e a escuridão de nossa alma, frequentemente. Isso se explica pela falta de consciência que temos sobre o gerenciamento de nossas vontades e deveres, verdades e mentiras, forças e fraquezas, individualidade e alteridade. Mas o que precisamente devemos fazer para recuperar a breve vida que advém de nossas breves mortes? Isto é, o que deveríamos fazer para equilibrar nosso adulto e nossa criança para, assim, atingir um estado de homeostase existencial — amar?

O Homodeus há de nos trazer as respostas, isto é, todas as verdades passionais. O Homodeus é amor, e a Homociência há de ser o movimento perene do ser social humano rumo às verdades literais. Entendendo nossas bases, no entanto, é que entendemos o modo como o ser humano é, em verdade, além de bicho arrogante ou frágil, um bicho Homomorfo. O que isso significa? Significa que as inúmeras versões de nós mesmos, absolutamente distintas entre si, são, precisamente, o que nos fazem um só. A vida vem da morte, a força da fraqueza, e a felicidade da tristeza em si. Ao que parece, a existência de constitui, no mínimo, de dualidades. Nada é único, só ou singular, e disso se trata o Homodeus como o equilíbrio entre partes opostas que, em verdade, tem um tanto uma da outra dentro de si (ref. Yin-Yang).

Somente das breves mortes com as quais presenteamos uns aos outros é que podemos ser abençoados com breves vidas livres de nós mesmos. Não se vive apenas uma vez, pois se vive tanto quanto se ama, e se morre tanto quanto se odeiam as coisas. Viver somente da luz é, essencialmente, uma forma de auto-ódio. Parece paradoxal, mas ao sujeito que não odeia a ninguém, a verdade parece ser que somente odeia a si mesmo — afinal, chegou ao ponto de negar sua escuridão, suas verdades, e passou a viver sob o falso brilho de uma máscara ansiosa. Não há como viver sem desprezar, odiar ou prejudicar. (Essa foi minha compreensão inicial na jornada existencial.) Todos temos efeitos positivos e negativos. Pela própria simbologia do equilíbrio preto e branco, notamos que há apenas uma pequena parte daquele que nos é oposto dentro de nós mesmos. A meu ver, isso deveria caracterizar empatia, e nunca submissão. É inevitável ser odiado por amar, como se vê pela inveja, homofobia ou inimizade. Utilizo disso tudo para dizer, no fim, que o exercício da própria vontade, do próprio corpo, consiste na valorização das duas partes: preto/branco, homem/mulher, positivo/negativo, forte/fraco, ação/descanso. É necessário viver e deixar morrer.

Chegamos, portanto, depois de tamanha introdução, ao ponto-chave da minha reflexão. É complexo, ao que soa pelo tamanho assustador, mas se trata de uma compreensão acumulada. O trabalho maior foi organizar tudo em um sentido minimamente tangível e alcançável ao leitor mediano. Repare a forma como tratei o auto-ódio, no entanto. Ocorre que, a uma pessoa que “se permite” viver na frieza, há, em verdade, um esforço dobrado para aquecer e ser aquecido pelos outros. Como vimos, no entanto, dar dobrado é tão ruim quanto dar nada. Extremos nunca são bons, e se deve ser estoico a esse respeito. Alguém que se esforça pelos outros mais do que por si mesmo, dando então mais valor aos problemas, valores, tempo, desejos e necessidades do outro do que aos próprios, não se respeita, consciente ou inconscientemente. Dar-se demais ao outro é dar nada a si mesmo, ao passo que dar-se demais a si é ser arrogante e avarento. A justiça da existência, e o verdadeiro objetivo dela, é o equilíbrio entre as partes: o Homos. Àquele que se dá demais, o «não» é uma virtude, e àquele que se dá de menos, o «sim» é uma conquista. Ao meu tipo, um rígido, dizer sim é uma aventura e tanto. E não é que eu não tenha medo, mas somente gostaria de ser mais justo sobre ele. Se o medo for apenas a luz do mundo me cegando e mantendo-me sob seus holofotes, então devo trazer comigo minha sombra. E se o medo for uma dificuldade real da criança, no entanto, devo protegê-la.

Faz-se necessário gravar símbolos, figuras e representações daquilo que amamos. Se gostamos de algo, devemos cercar-nos dele, para então garantir que não nos esquece­re­mos e que, portanto, continuaremos a ser tanto quanto é o nosso amor. Como disse, aos sensoriais, pessoas mais focadas na experiência concreta, o mundo surge de dentro pra fora. É como se o amor dessas pessoas fosse um radar. A um sinal enviado, eles precisam de uma resposta vinda do externo. Para essas pessoas, é saudável manter objetos mais ou menos tangíveis que representem suas paixões e que, então, as mantenham próximas. Ter objetos do que se ama é como estar abraçado. Esses objetos podem ser uma imagem de plano de fundo no celular, uma figura na capinha, uma camiseta, mochila, broche, frase, tatuagem, conteúdos online, o consumo em si, entre várias outras coisas. Para outras pessoas, no entanto, o mundo surge de fora para dentro, o que significa que é mais o mundo que as carimba do que o oposto, como ocorre com os sensoriais. Esse são os intuitivos. Eles podem não precisar necessariamente de objetos para representar o seu amor, sobretudo se forem pessoas mais reservadas. Outros, no entanto, podem ser bastante expressivos em seu amor. O ponto é que, como eles recebem mais do que enviam esse “sinal”, seu amor raramente é esquecido.

Discuti sobre isso com uma queridíssima amiga minha (ILI SO5), que disse que, embora não se cerque tanto daquilo que ama, ela permanece amando. Comigo (ESI SP4), no entanto, é o contrário. Não importa se está a um metro de mim, noutro estado, país ou planeta. A distância me parece uma só, pois meu parâmetro é apenas «meu sinal não foi respondido». Eventualmente, deixo de enviar sinais, e portanto me distancio e esfrio em relação a dado amor. Preciso das pessoas fisicamente presentes e constantemente dedicadas por mim. Ela, por outro lado, como uma intuitiva, tem uma compreensão muito maior dos sinais do mundo. A marca permanece nela por muito tempo. Poderíamos dizer que ela é mais profunda, à medida que eu sou mais superficial. Como sempre, não é um sentido pejorativo. Numa pessoa mais absortiva como ela, no entanto, o complexo de sinais tende a se condensar e, por isso, como uma cebola, seja difícil de se decair. No caso de alguém como eu, no entanto, que deseja se expandir, é extremamente frustrante estar distante. Estar distante é estar frio, e estar frio é estar morto. Como eu mais envio sinais do que os recebo, poderíamos dizer que sou “extrovertido” nesse sentido. Minha energia emocional está sempre fluindo para fora, de modo que meu interior frequentemente se sente exaurido.

Cada pessoa terá a sua necessidade de brados e sussurros, isto é, cada um terá aquelas partes de si que precisa nutrir ou cuidar. Para essa análise, parti do sistema da Sociônica. Observei como essa frieza sempre ocorre no nível do subconsciente, representado pelo sistema como o anel passivo, ou vital, em que os pensamentos não são conscientes e tampouco se lembram de onde vieram. Assim, por exemplo, eu tenho como minha “criança” (Id, Sombra) as qualidades [Fe/Si +], i.e., a expansão/liberação da hiperexcitação emocional interna e a consequente indulgência sobre a positividade das emoções. Minha queridíssima amiga, por outro lado, tem como sua criança as qualidades do bloco Id [Ne/Ti +], que se destacam por sua exploração intuitiva de ideias lógicas a fim de expandir as possibilidades da vida. Ser criança é divertido, mas ao mesmo tempo difícil. Essas qualidades infantis, relacionadas ao corpo, relacionam-se necessariamente à energia física e corporal. Quanto mais cansados estamos, ainda mais cansada está a nossa criança. Notamos a diferença entre um indivíduo cansado e energizado sobre as qualidades do bloco sociônico Id. Quando estou cansado, não tenho energia para ser liberada em forma de emoções positivas, então apenas desejo o conforto como suplente emocional e existencial. Maria, por outro lado, quando cansada, não gostaria de pensar sobre muitas coisas e nem de julgar assiduamente uma ideia em sua logicidade. Além disso, nossa criança (Id) somente surge quando estamos confortáveis. Sobre a criança, recorrentemente “ligamos o foda-se” ou “fazemos birra” e nos “emburramos” quando estamos diante alguém desgostado. Eu deixo claro as pessoas de quem não gosto e que me soam negativas. Maria deixa clara as aberturas de uma ideia e sua visão ampla e maleável sobre sua logicidade e possibilidade existencial. Quando nossa criança (Id) morre em sua ternura, certamente é por efeito de uma debilidade em nossa animação, nossa motivação (Superid).

Por fim, ressalto uma discussão análoga que tive sobre a maturidade. Duas amigas minhas estavam discutindo sobre maturidade. Uma delas se queixava de como sentia-se imatura por sua nova caneta de cores alegres pastéis e com adornos infantis. Comecei a elaborar, então, sobre como seria, na verdade, o oposto. Talvez justamente por ter a coragem de usar algo assim é que denote sua maturidade, seu orgulho e seu amor. E exemplifiquei: Imagine uma piada imbecil. Para entender uma piada imbecil, seria necessário ser um imbecil ou alguém muito inteligente? Ambas as possibilidades são possíveis, mas diferentes. Um imbecil entende porque não vê sentido, e um inteligente entende porque vê o sentido e o toma para si de alguma forma. Creio que a maturidade seja igual. Utilizar essa caneta, que você tanto gosta, é, na verdade, prova da sua maturidade, pois mais valeu o seu desejo que o seu medo. Apaixonar-se é uma luta, e amar é uma vitória. “Filosófico”, a garota sentada atrás de nós respondeu.

Características opostas podem ser complementares ou compensadas. Uma pessoa que parece inteligente pode sentir-se burra em outro aspecto, ao passo que um imbecil pode achar-se inteligente diante dos outros. Alguém que é bom em algo pode simplesmente o ser, ou ser justamente porque é ruim nisso. A meu exemplo, considero-me péssimo na organização de dados. Por isso, esforcei-me cada vez mais na organização. Hoje, frequentemente recebo elogios por como me organizo e ajudo os outros. No entanto, a razão pela qual me sinto pífio neste aspecto é, na verdade, o tanto de energia vital que invisto, em vista de quão baixo parece o retorno. Mas me tornei bom nisso de tanto me esforçar. E por que meu esforço valeu? Porque uni minha paixão à minha necessidade, e da imaterialidade da paixão usufruiu a materialidade da necessidade, surgindo assim o amor, o conhecimento, o homos. Minha organização pode até ser simplória, admito, mas tem um valor singular em vista de quanta paixão atribuo a ela. Nesse caso, a organização é apenas a forma pela qual minhas paixões se manifestam. Algumas pessoas são forma (concretas) e outras são substância (abstratas). Todos nos temos o dever de nos sujeitar à parte oposta para atingir a verdadeira essência de nós mesmos. Afinal, isso é o amor, isso é o homos: uma união entre opostos que têm, em si, uma parte rejeitada ou embotada um do outro, na qual, por sacrifício, os dois tornam-se uma parte unificada e esforçada. O homos é, para mim, a essência da vida. Ainda espero pelos braços do Homodeus, mas jamais me darei à miséria de desprezar a Homociência. Espero, um dia, atingir o verdadeiro amor, e então atingir a Homoforma.

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