Homos: Forma e Substância

Para Ferdinand de Saussure, pai da Linguística moderna, a língua é forma e não substância. Isso consiste em que, a seu ver, a língua não existe por imanência, mas por concretização. A concretização ocorre por efeito das relações entre os «signos linguísticos». O valor saussuriano é muito rico para a compreensão de inúmeras matérias. Este é: um signo não possui valor a priori, pois somente adquire valor distintivo mediante a relação que estabelece com os demais do mesmo sistema. Noutras palavras, um signo é tudo aquilo que os outros não são. Poderíamos também dizer: “O que sou eu? Tudo aquilo que não sou, e também tudo aquilo que os outros não são.”

A forma da língua é, por base, arbitrária, pois os sons nem sempre ganham sua designação de conceito por natureza, mas porque nós os designamos. E, além de convencional, a forma é um produto social construído e compartilhado por uma comunidade. Por fim, ela é, de um ponto de vista, sincrônica: referente a processos que ocorrem ao mesmo tempo, e cujos elementos se definem por suas relações uns com os outros. Podemos dizer que, do ponto de vista sincrônico, a língua é tomada como estática, na medida em que enquadra um dado momento no tempo isolado de seu “filme” para, assim, analisá-la e suas relações em maiores detalhes.

Oposta à forma, eis a substância, o material bruto e subjetivo da realidade. A substância é abstrata e somente temos acesso a ela por meio do recorte que fazemos ao adotar um ponto de vista, isto é, ao circunscrever um dado objeto. Toda língua e toda forma é uma circunscrição da realidade. Delimitamos nosso objeto ao adotar um ponto de vista específico que, muitas das vezes, se dá como efeito de nossa experiência de vida como um todo.

Quando partimos para Spinoza, podemos aprofundar ainda mais essa visão. Spinoza entende a substância como algo imanente, e as formas, podemos dizer, como expressões singulares dessa substância infinita. A substância é, portanto, a realidade em sua totalidade, a causa de si mesma e a fonte de tudo o que existe. O que nos pareceria contraditório é o fato de que o filósofo observou a substância então como algo único e imutável, no entanto, articulo a favor. Concordo que a substância seja una e imutável, desde que seja relacionável em si mesma através das formas. Assim, a substância ganha uma dimensão quádrupla e, podemos dizer, portanto, que tudo o que existe ou que existirá, na verdade, sempre existiu. Ocorre que, como somos limitados em todas as nossas reações, somos limitados em nossa existência.

Na área da Filosofia e da Psicologia, ainda, distingue-se objeto e sujeito, sendo que o primeiro diz respeito à forma e o segundo, à substância. O sujeito é algo que somente existe em si mesmo, é consciente e agencia a mudança no mundo. O sujeito como se fosse uma parte limitada da imanência em si, limitada, portanto, pelo corpo, pelo objeto. O objeto, por sua vez, é tudo aquilo que o sujeito não é, aquilo que recebe o efeito de um sujeito. Como realidade externa e "passiva", no entanto, o objeto também complementa a existência do sujeito. Todo sujeito, ao agir, torna-se um objeto para outros sujeitos. Podemos observar isso no conceito de extrotimia na Sociônica, em que o indivíduo inicia o movimento do mundo, seja perante a força, a lógica, ideias ou emoções. Os extrotímicos mobilizam a realidade a seu favor, enquanto os introtímicos entendem as relações en­tre os objetos a fim de se consolidar e agir, seja perante a ética das relações, a lógica da justiça, as sensações ou as depreensões temporais.

O ancestral símbolo Yin-Yang da filosofia chinesa nos destaca o modo como a vida se constrói a partir de dualidades. Poderíamos associar a forma, o objeto e a extrotimia a Yin, que destaca: escuridão, passividade, interior, contração, inércia, etc. A substância estaria, então, alinhada, junto do sujeito e da introtimia, a Yang, sendo este entendido como: luz, atividade, exterior, expansão, força, etc.

Yin e Yang não existem um sem o outro. Eles são complementares, interdependentes e, além de se equilibrarem, interpenetram-se mutuamente. Há um pouco de Yin em Yang, e um pouco de Yang em Yin. E acredito que, aqui, depois desta breve contextualização, podemos iniciar a minha verdadeira discussão: em que a compreensão de forma vs. substância, objeto vs. sujeito, luz vs. escuridão, Yin e Yang, afeta a minha vida?

Ao entrar na faculdade, comecei a aprender muito sobre o mundo. Entre essas coisas, está a compreensão de forma e substância, que, em si, aprofunda a minha concepção do Homos como algo similar a Yin e Yang, construído da escuridão e da luz. Agora, relacionando essas duas estruturas para edificar o Homos, peço que considere as relações estabelecidas no parágrafo acima. Ocorre que a parte negra do Homos, a escuridão, pode ser entendida como a verdade do universo. Insisto em dizer a todo momento que o segredo da vida está nas espirais, e o maior significado que fui capaz de atribuir a isto relaciona-se com o espaço-tempo. O tecido do espaço, sendo este negro e abstrato, age como fundamento da luz-matéria.

Como constituinte do universo, o tapete é o alicerce de sua estrutura, sendo que as formas são apenas o complemento efêmero e cinético. Então, para não incluir a matéria, pelo menos por ora, digo que o tapete é tudo o que existe, e por isso o apelido de "verdade". O tapete é, portanto, algo como a substância. Somos parte do tapete cósmico na medida em que somos construídos de matéria e dotados de essência, o que inclui nossa alma, consciência, espírito, entre vários outros nomes que não abrangem sua complexidade. A escuridão do tapete também pode, portanto, ser encontrada em nosso interior. Jung percebeu isso ao destacar o conceito de Sombra. A verdade é, nesse sentido, algo que constantemente negamos e reprimimos a nós mesmos e, portanto, ao mundo. A verdade é fria e, de algum modo, consegue ser dura em lugares que sabemos como pode doer. A verdade é limitada pelo corpo.

A luz, por sua vez, constrói todo o universo material que conhecemos. Em consonância com Spinoza, diria que a luz é um mero modo de expressão da substância que, em si, se entende por divina, eterna, independente e única. A luz tem muitas formas, e por isso a chamo de luz-matéria. Ela está acima da escuridão do tapete somente a nível concreto, manifestada em diversos ritmos, clarezas, densidades, destinos, cores, curvas, movimentos, etc. Se a escuridão mais virtuosa é aquela que ascende ao movimento, a luz mais digna é aquela que desce dos céus à terra, aquela que se permite tomar forma física ao diminuir seus atributos e, assim, chegar mais perto de Deus, da substância, da escuridão, da verdade. (E aqui, inclusive, gostaria de mencionar “Fullmetal Alchemist”, em que o deus representado consiste numa entidade de tudo aquilo que existe, cujo nome é “Verdade”.) A luz é uma expressão, um movimento da escuridão que, em si, sempre existiu e que existe por si só. A luz não é muito diferente da escuridão na medida em que parte dela e vive nela. Mas, ainda sim, sua natureza é ser oposta a ela. A luz é como uma escuridão que se emancipou de si mesma.

Seguindo a proposta de Jung e Saussure, destaco a luz como uma parte nossa que se relaciona com o mundo a fim, ou com efeito, de ocultar a escuridão, a verdade. Adotamos, portanto, uma máscara diante do mundo, uma persona. Muitas vezes passamos por um processo de projeção tão assombroso que, em verdade, vemo-nos apenas de fora, e não de dentro, vemo-nos e entendemo-nos como aquilo que apresentamos ao mundo e, com efeito, como aquilo que ele espera de nós. (Somos nossa luz.) O maior problema disso, a meu ver, é o modo como desejamos trazer nossa sombra à luz, sendo que não se ensina um peixe a escalar árvores. (Cito “Detona Ralph”, quando Vanellope não pode sair do jogo, não pode atravessar a barreira.) Assim, tornamo-nos prolixos em todos os sentidos do ser. Andamos em círculos e nos posicionamos de ponta-cabeça ao tentar trazer toda a nossa sombra à luz. E é orgulhoso de nossa parte querer, primeiro, fazer o mundo aceitar nossa sombra e, segundo, submeter nossa sombra àquilo que ela não é. Nem toda nossa subjetividade pode ser concreta, e gostaria de, finalmente, argumentar sobre a necessidade e o benefício de limitar o próprio ser.

Sobretudo a extrotimia e a introtimia nos tornam claro o modo como devemos nos limitar para sermos bons em algo (assimetria). Ainda devo ensaiar sobre isso, mas vejo que a perfeição está, precisamente, nos defeitos. Os segredos da vida estão nos paradoxos, mas o ser humano é enformado demais para explorá-los. Enquanto não nos entregarmos às espirais, permaneceremos limitados. Nessa visão assimétrica da Sociônica, retomando, observa-se como um extrotímico se interessa pelos objetos em si, em sua forma e estrutura. A boa qualidade de um objeto o leva a boas relações. Em outros termos, a boa forma do objeto leva a uma boa substância. O introtímico, em contraste, entende as relações da vida e observa que somente as boas relações constroem um bom objeto. A boa substância do mesmo, portanto, leva ao bom formato de sua expressão. Para este, as relações entre substâncias levam a um efeito objetivo nas formas. Para aquele, as qualidades dos objetos levam a uma compreensão substancial e subjetiva de sua interioridade.

O que o mundo acadêmico me ensinou é que a sociedade, assim como a língua — afinal, trata-se de um fenômeno social —, é forma. A humanidade se constrói de formas e, em geral, tende a ser superficial. Não há como fazer o outro entender a totalidade de nós mesmos, e por isso necessitamos limitar-nos em nossa expressão para, assim, atingir o máximo de concretude e, por conseguinte, de efeito no mundo. Por isso, então, mesmo nas ciências humanas, não é a originalidade o que mais vale, pois esta é volátil. O que vale é a objetividade, a concretude. E não é necessariamente uma repetição, mas uma eterna crítica, pois nosso objetivo humano é, no final, modelar a realidade ao máximo, bem como moldá-la. A criação que devemos efetuar é dentro de nós, e somente depois fora. Não tem como começar a própria vida de dentro para fora. Mesmo o mais extrotímico dos tipos mobiliza o mundo a partir de seus desejos individuais.

A sociedade humana é, portanto, como um conglomerado de formas. Podemos imaginar um grande cubo — e não uma pilha, porque esta não representaria a organização — construído por diversos outros cubos menores (pessoas). É disso que se vale o instinto social do Eneagrama e, no mesmo sentido, a própria ciência humana. Sozinhos, somos incapazes, mas unidos, nos tornamos mais fortes, capazes e completos. Para tanto, devemos sacrificar nossa substância (individualidade) a fim de contribuir para a forma (objetividade, sociedade, coletividade) da nossa raça. E de que serve a forma? A forma é um ponto intermediário de contato entre nós mesmos e o mundo. É, simultaneamente, expressão de que somos e construção sobre aquilo que o mundo é. E essa interface, portanto, serve a que cada um possa, da objetividade, tirar o que seja mais rico para sua subjetividade. E assim sucessivamente.

A originalidade teria mais a ver com a substância, a individualidade. Na mesma medida, teria a profundidade a ver com a sexualidade. E destaco o sexo num sentido instintivo e eneagramático, de contato íntimo e, acredito ter deixado claro, neste caso, entre substâncias. Somente um parceiro “sexual” terá acesso às nossas intimidades e ao nosso eu mais profundo. O sexo é, portanto, compreendido nessa instância como uma conexão entre formas a fim de fundir substâncias. O sexo é a mais profunda das relações. Cada pessoa tem uma forma diferente de fazer isso, e uma maior ou menor dificuldade, bem como maneiras, frequência, etc. (Os gregos já destacavam isso com seus oito amores.) E sobre o instinto sexual do Eneagrama, devemos notar: sua expansão não é como uma força omnidirecional, mas unidirecional. O sexo tem um objeto de foco, o qual é perseguido insistentemente a fim da conquista daquilo que soa mais essencial. O que digo aqui, então, é sobre como devemos entender mais sobre as formas de nossa existência. Falo sobre o direcionamento de nossa substância. Atrás, falei sobre a sociedade e a assunção de uma forma. Agora, digo que é importante para a nossa sobrevivência a capacidade de julgar qual lugar melhor nos cabe, e qual a distância adequada, bem como a diplomacia bivertida necessária para a adaptação e, em maior essência, à nossa existência como seres sociais, sexuais e sobreviventes, bem como homomorfos limitados.

Devemos ser diplomáticos com nós mesmos tanto quanto com os outros. Nenhum de nós vale mais, é o que destaco com o Homodeus. E gostaria de esclarecer, ainda, sobre o sacrifício que exige viver em sociedade. Não entro no âmbito do atravessamento social, mas elaboro, sobretudo, a partir de uma perspectiva individualista, com o indivíduo substancial como centro ao invés da pessoa objetiva. Parece-me que toda forma de relação é uma aposta e, na mesma medida que limitante, engrandecedora. Mesmo as más relações podem nos trazer algo de bom: o conhecimento daquilo que não nos é bom. Podemos nos sentir frustrados, no entanto, ao não conseguir “expressar por completo” o que sentimos. Argumento aqui que isso é impossível. Tudo o que o mundo, o que os outros podem a cessar sobre nós, é nossa forma. Nossa forma sempre será limitada, será uma breve parte de nós. Podemos dizer, imageticamente, que da massa irregular que é o nosso espírito, o cubo de nossa forma somente compreende parte disso. E, dessa parte, temos várias faces, uma voltada para cada direção — na maioria das vezes estática, pelo que observo da dificuldade que temos em mudar. Isso explica o fato de termos uma “personalidade” para cada ambiente ao qual nos adequamos. Afinal, é porque nos encaixamos de formas diferentes em diferentes grupos, e mostramos diferentes faces de um mesmo todo a diferentes pessoas. É bastante complexo.

Ocorre que o mundo, como forma, é opressivo à nossa substância, isto é, nos limita. Mas, como um masoquista (SP4), digo: somente na medida em que o mundo nos oprime é que somos capazes de alcançar um punhado de felicidade. Valorizamos nossos grãos como se fossem colheitas inteiras, e nossas gotas como se fossem oceanos, tudo isso porque vemos maior riqueza na vida à medida que observamos nossa mediocridade. Para mim, um Invejoso do Eneagrama, todos estão no mesmo “patamar”, partilhando da mesma essência — esta é a Origem, Ideia Sagrada do Eneatipo IV. Na mesma medida em que somos limitados pelo mundo, portanto, ele também é tudo o que somos e podemos ser. Ainda que possamos sonhar com as estrelas e com a negritude mais pura, em nada ela nos é palpável. Não vivemos de dentro para fora, mas de fora para dentro, ao que me parece. Somos constantemente afetados uns pelos outros e pelo mundo. Nossa existência é limitada por nosso corpo, suas qualidades e capacidades. Por isso, gostaria de apontar como há certa grandeza em sermos pequenos, uma certa originalidade em sermos tudo o que todos já fomos, e uma perfeição por efeito de todos os erros que já vivemos. Notarmo-nos pequenos é efeito de nossa capacidade de nos perceber como somos. Não somos todo o rastro que deixamos por nosso navegar, mas apenas o barco em si. Não somos originais intrinsecamente, mas porque, do acúmulo de experiências que partilhamos, tiramos uma observação brevemente mais ampla através da fechadura da porta das verdades eternas. Se somos perfeitos, é porque estamos em movimento. Como dizem os antigos: perfeitos são só os mortos. Eles já foram tudo o que poderiam ser. E ser tudo o que podemos, desempenhar ao máximo o nosso potencial através do esforço, da flexibilidade e da diplomacia... Isso nos faz perfeitos.

Este é o primeiro grande e estruturado ensaio que faço sobre o Homos, o fundamento das três estruturas fundamentais que sigo do Eneagrama: o coração (Homodeus), o cérebro (Homociência), e o corpo/intestino (Homoforma). Mais a este respeito deve ser estendido em ensaios posteriores. Entretanto, caro leitor, ao final, note como, em verdade, encontro o sentido de minha vida nos paradoxos irreverentes dessa existência gloriosamente desconexa. A essência do Homos é, no fim, algo como uma “heterohomogeneidade”, que denota a forma uníssona e eterna, essa fruto da união de adequadas substâncias particulares e efêmeras. O segredo da vida está nas espirais! De breves mortes, vivemos breves vidas, e assim sentimos a eternidade que há em nós. Divergindo de Spinoza, aponto como o Homodeus é parte imanente e parte concreto. Ele faz, claro, parte de todos nós, intrinsecamente. No entanto, ele precisa ser atingido mediante o movimento dinamicamente estático. Quanto mais nos unirmos, mais perto estaremos do Homodeus. O Homodeus é o amor que há em nós, e a Homociência há de ser nossa honestidade. O que é a Homoforma? O estado superior de nosso ser, nossa perfeição, vontade, identidade, originalidade e força. Somos seres Homomorfos limitados à mera alcunha de humanidade. O deslumbre há de nos guiar às espirais, e a escuridão nos revelará as verdades ancestrais. Há uma parcela da divindade em cada um de nós.

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