Ensaios Psicológicos

Análises psicológicas autorais a partir das tipologias unificadas. (Obviamente, todas as análises contêm spoilers)

Liesel Meminger (EII SP4 MF)

  • A fobia emocional no Eneatipo 4

Liesel apresenta poucos traços da estrutura de um SP4 — pelo menos no filme, por onde a conheci. No entanto, é visível a característica tensão presente no subtipo. E, embora não seja algo muito comentado sobre o E4 em geral, acho importante destacar o medo constante sob o qual Liesel vive. Claro, é um caso extremo, mas um fator-chave consta aqui: o ambiente no qual o SP4 vai contra seus padrões éticos, contra seus desejos, sua voz, seu poder. Liesel passa por um processo de “projeção” enquanto lê na casa do prefeito; ela idealiza a ação, a própria abertura. Ela parece ser internamente abalada pelo peso do ocultamento, do mistério, da mentira — afinal, a mentira não detém nada de original. Então, ela se imagina sussurrando para a esposa do prefeito: “Estamos escondendo um judeu na nossa casa.” Mas tudo acontece apenas em sua mente. O E4 é — a exceção do SX4 — tão castrado como o próprio E6: ele é um covarde emocional. A castração que ocorre no E4, no entanto, é a castração da expressão emocional: ela anseia se abrir, mas não pode, pois é perigoso — e, por isso, se introjeta. (Novamente, é um caso extremo.)

Dada essa característica “inadaptabilidade” introjetada, o SP4, no caso a Liesel, vê a necessidade de permanecer fechada dentro de seu próprio mundo interno. Os outros são julgados severamente! Mas em silêncio. Ela é uma EII, não uma ESI. Numa cena, quando é descoberta em seu primeiro furto de livro após uma queima pública por parte da SS, ela discute com Hans sobre a vida de sua mãe. Questiona, fervorosa, se havia o Führer matado também sua mãe. Hans diz que sim, e ela grita: “Então eu odeio Hitler!” Ao que Hans, um SO9, responde com temor e ansiedade. A diz para não dizer mais isso: jamais. Hans é uma pessoa de confiança para Liesel, e por isso ele é pouco questionado, pois sua bondade é bem vista — e, se não fosse, a forte intuição emocional do E4 perceberia: “Você está mentindo”, diria, fosse em tom de revolta (certeza), medo ou tristeza (decepção).

A característica mais distintiva entre um SP4 EII e um ESI, parece-me, é o destino da ação. Observo em Liesel o cultivo de um mundo interno muito rico e cheio de ideias. No entanto, nos ESI SP4, existe uma posição de ditador: ele quer dobrar o outro aos seus ideais (e, enquanto o outro não for exatamente da forma que ele deseja, não será digno de perdão, de respeito ou compreensão.)

Chris Rock (ILE SP7 SM)

  • O oportunismo e o prazer como defesa do ego

No episódio 08 da quarta temporada de Todo Mundo Odeia o Chris, somos apresentados à personagem Kelly, apelidada de “Garibalda” pelos alunos. Kelly tem uma queda pelo Chris, mas Chris preza muito por sua imagem. O que podemos observar em personagens SP7 em geral, como Saul Goodman, Bart Simpson, Bojack Horseman, Lúcifer Morningstar, Usopp, entre outros, é o oportunismo. É “a pessoa que precisa encontrar vantagens, tirar proveito”, ele carrega “uma preocupação excessiva em escapar dessa ameaça à conservação fazendo bons acordos e negócios com cada oportunidade”.

Todos eles precisam tirar vantagens, mas nenhum deles quer se ver como um monstro. É apenas uma necessidade neurótica; a moralidade ainda existe, embora a ética não seja tão valorizada ou verbalizada. O que observo no oportunismo, então, é a mentira sobre as próprias intenções. Chris é evasivo com Kelly pois ele não quer ser visto com ela. Não consigo ir tão a fundo na motivação de Chris para essa vergonha, mas especulo que pode se tratar justamente do seu ponto mais vulnerável: a ética introvertida. Os padrões éticos são vulneráveis neste tipo (quando ILE), e por isso não costumam lutar por aquilo que acreditam. Temem a chacota pois não sabem lidar com a profunda dor emocional da autoconsciência

Existem, também, tipos como o Rick Sanchez e 22, ou Hans Landa. Estes são uns que se escondem no oportunismo e na acidez do medo real que têm da vida em si. 22 é uma personagem construída inteiramente sobre isso, enquanto Hans Landa evidentemente busca por coisas que vão confortá-lo, sem qualquer consideração pelos outros — a empatia nem mesmo passa por sua cabeça. Rick Sanchez, no entanto, se esconde num narcisismo mais abertamente expresso devido ao seu E8 alto no tritipo. A alta atividade de Rick oculta seu profundo vazio existencial. Ele busca superar tudo isso através da oportunidade que a posição de “o homem mais inteligente do universo” lhe proporciona.

O que gostaria de destacar aqui é como o E7, apesar de sua fama de otimista devido ao subtipo sexual, ainda é um tipo da tríade cerebral. O sentimento com o qual ele lida é o de insegurança, medo, ansiedade (um pensamento superveloz), inquietação existencial. No entanto, tendemos a esquecer isso devido ao estereótipo. Tudo isso, em qualquer tipo do E7, é sobreposto pela neurose gulosa, pela fixação autoindulgente e pelo planejamento como mecanismo de defesa. Mas ainda existe um forte fator de ansiedade. Isso pode ser observado principalmente em personagens complexos como Bojack Horseman e Bart Simpson. Eles fingem ser quem são (mas não como um E3, pois o E3 não carrega todo o conceito de persona), mas, quando fraquejam, vemos como é densa a escuridão em seu interior. Como Bart é uma criança, no entanto, vemos apenas a fraqueza: ele chora por sua mãe. O problema existencial é superado através da necessidade por prazer. E, em personagens mais caricatos, como Chris Rock, essa busca é vista apenas superficialmente na atitude, pois o pensamento está oculto — no entanto, na voz do narrador, podemos notar o peso da ironia como defesa.

Eleanor Shellstrop (SLE 873 SPX CS)

  • Um império em guerra, um aspecto selvagem de autopreservação

Eleanor, protagonista de “The Good Place”, trouxe-me várias oportunidades de insight sobre o eixo oral-agressivo do Eneagrama — eixo esse, eu diria, que denota uma clara oposição à oralidade-receptiva (2-7). Acho que uma personagem com tal caráter, tão inexprimivelmente catastrófico, não poderia ser melhor abordado em qualquer outra série, senão em “The Good Place”: uma série cômica, com traços muito retraídos de grandes reflexões existenciais. Como protagonista, Eleanor parece ser igual: alguém cômico e de postura jocosa (quando não agressiva), mas com sérios problemas a serem abordados, muito ocultos sob tal postura.

A primeira parte sobre a existência de Eleanor é uma problemática sobre a vulnerabilidade, por sua vez interdependente à falta de amor durante a infância. Já aos 16 anos, ela trabalhava para se sustentar porque seus pais não cuidavam dela em qualquer sentido. A mãe, uma hedonista oportunista, e o pai, um preguiçoso delinquente. O E8 é descrito por Naranjo como alguém com uma postura hipermasculina diante do mundo (em oposição ao E2, seu tipo negado), isto é, alguém que realiza seu desejo de espaço e existência através do poder concedido pelo membro fálico, desprezando, rejeitando e, implícita e inadmitidamente, temendo o órgão vaginal: a agressividade e o poder devem ser utilizados sempre que possível para evitar a dor da negligência de um suporte ou consciência vaginal, do conforto do seio.

Podemos observar, assim, como o E8 é um oral-agressivo bastante oposto ao E4: Os orais-agressivos lidam com a dor da perda do seio ou do conforto materno devido à agressividade que emanam; mas, por um lado, o E4 decide introjetar essa dor para preservar as relações, enquanto o E8 nega a sua maldade e — numa interpretação figurativa do E8 como «9+6» — projeta toda e qualquer maldade no mundo. A vulnerabilidade é algo sentido com agudez e rejeitado com toda a força. Enquanto se desculpa com Michael por ter considerado falso o conceito do livre arbítrio, ela menciona abrir uma “mangueira de culpa” (como uma de bombeiro), com a qual ela mira nos outros, gritando “É tudo culpa sua!”, enquanto os enxarca agressivamente com esse veneno.

Um importante ponto a ser observado, também, é o reencontro de Eleanor com sua mãe. Como dito, a figura materna — pelo menos no caso da Eleanor ou, de modo mais geral, do próprio SP8 — é alvo de todo o ódio, toda a culpa: a culpa da falta, da dor, da inaptidão, dos defeitos, da fragilidade (embora encoberta), etc. Eleanor passa pelo menos um terço do episódio observando sua mãe em sua “nova vida normal”, esperando até que ela finalmente revelasse seu lado mais desprezível. Ela tenta dizer a seu novo marido como sua mãe realmente era, mas ele, alguém passivo e otimista, diz que já sabia e que estava tudo bem. Eleanor se mostrava claramente perturbada (e implicitamente abalada) por como sua mãe era bem-vista pela comunidade escolar e amada por seu marido. Isso tudo converge naquele que Naranjo definiu como o ponto central do E8: a punição. O verdadeiro monstro, isto é, o alvo da culpa, aquele que causou dor e cuja vontade é nociva aos outros, deve ser destruído em todos os aspectos.

No entanto, ainda há mais: o ponto-chave do ódio de Eleanor é a nova filha de sua mãe, que tem nove anos. Ela recebe muito cuidado, amor, carinho, atenção, presentes e esforço da mãe. O rosto de Eleanor, que estaria prestes a contar a verdade para o novo marido de sua mãe algumas cenas antes, desmancha quando ela vê a criança. Também podemos ver, aqui, a dor, a criança negligenciada escondida sob o império do SP8. E, dessa dor infantil jamais superada, nasce um propósito de punição e dominação. Michael fica confuso com a obstinação de Eleanor em derrubar sua mãe e com sua profunda desconfiança. Ele questiona: “Se você mudou, se eu mudei, por que sua mãe não poderia mudar?” Eleanor não derrama lágrimas, mas chora através de seu tom trêmulo e de seus lábios caídos, falando sobre como o que ela sentia, no fundo, era inveja. Ela nunca recebera qualquer cuidado ou mesmo coisas básicas de sua mãe quando era criança. Como era justo que agora ela fosse uma pessoa melhor? “Eu não devo ter sido boa o suficiente pra que ela pensasse em melhorar”, ela lamenta. Michael fica sem palavras.

O que aprendo com Eleanor é que os SP8s não são necessariamente o estereótipo de um psicopata maníaco, um egoísta sem empatia — como Dio Brando, Ryomen Sukuna ou, em certa medida, Meruem. Eles podem, e geralmente são, pessoas que se escondem da dor do abandono por trás de muralhas de agressividade e cinismo. Se o SP5 se reclusa dentro de seu castelo, em sua torre de marfim, para se defender do mundo, o SP8 é aquele que ataca — por isso a análise como um «9+6» —. O SP8 não possui um castelo, mas um império, e está constantemente se expandindo a fim de garantir a própria sobrevivência e, por vezes, a própria superioridade, isto é, segurança, sobre os outros. Temos, ainda, outros SP8s que trancafiam a dor sob o cinismo ou a agressividade, como Stanley Pines, Tai Lung, Mazikeen Smith e Max Mayfield. (Os melhores para a agressividade são Mazikeen e Tai Lung. No caso de Mazikeen, há uma cena na qual ela chora porque pensou que Lúcifer a abandonaria. Mas Tai Lung é o melhor SP8 para se embasar ao falar de Negação, isto é, de projeção da maldade.)

Ainda assim, toda a tristeza e dor não apaga um fato fundamental sobre seu caráter, considerando sua correspondência ao SLE: não há lógica em ser bom se a bondade só reflete a maldade do mundo. Ser bom é ser vulnerável ao mau. Eleanor apresenta bem isso enquanto tenta ser boa: ela deixa um bilhete se desculpando por ter batido num carro enquanto estacionava, no entanto, a pessoa age de má fé e move uma ação judicial contra ela, alegando ter se ferido durante a batida (nota: a pessoa nem sequer estava no carro). O SP8, então, se vê na necessidade de agir com agressividade, dominância, cinismo, oportunismo e com um egoísmo distanciador diante de um mundo inaceitável por sua maldade. (Para retratar a distanciação, o melhor exemplo seria o Rocket Raccoon, de “Guardiões da Galáxia”.)

Costumo dizer que somos como “licores aprisionados num coração petrificado”. Elaboro sobre em “Verde Licor” (Bolhas Bobas: Diário do Homomorfo; Cp. 4). Na poesia, falo sobre ter sido, em parte, “petrificado ao olhar nos olhos do mundo”. O mundo, então, é como uma Medusa, e o SP8 é um guerreiro que fecha os olhos para combatê-la, pois já foi muito prejudicado por seu olhar petrificante — foi a maior vítima dele; é o tipo mais cascudo.

Andrew Neiman (ESI SPX 461 MC)

  • A identidade dos cardíacos como um casulo vazio

Andrew Neiman se destaca entre os personagens que serviram como prato principal em vista de minhas análises caracterológicas. Sim, já fiz um ensaio psicológico sobre a Liesel, uma SP4. Mas não me preocupo apenas com confeccionar observações de personagens singulares para cada caráter... Cada um deles é, na verdade, bastante plural, de modo sempre haverá aquele que nos apresentará um novo caminho traçado a partir, ou mesmo em busca, do mesmo objetivo. Enquanto Liesel se destaca com pequenos traços estruturais do SP4, Andrew Neiman lembra-nos uma pessoa real e multifacetada.

Numa das cenas iniciais do filme, deparamo-nos com uma cena que, a princípio, parece um mero traço banal do comportamento de Neiman, mas que, olhando em retrospecto após o conhecimento do corpo de um SP4, relata algo interessante: uma autodesvalorização tão fundamental que chega a ser implícita. Ocorre que, enquanto vai ao cinema com seu pai (um aparente SX9, diga-se de passagem), Andrew não vê problema em adicionar as Raisinets (uvas passas cobertas de chocolate). Seu pai o questiona: “Não vai comer?” Ao que ele responde: “Eu não quero as Raisinets. Eu como ao redor delas.” A última frase destaca um tom de “Está tudo bem”. Já nesta cena observamos a natureza masoquista, ou tenaz, do personagem de Andrew. Não é necessário tomar um posicionamento agressivo diante de uma dor que pode ser suportada ou que, na pior das hipóteses, pode servir de gatilho para uma evolução — «tenacidade» também me remete à capacidade curativa da carne: “me machuco, perco partes de mim, mas me torno mais forte”, os SP4 parecem pensar.

Para entender a trajetória de Neiman ao longo do filme, é crítica a dependência de uma análise (ao menos por tabela) de Terence Fletcher (LSE SXO 136 C). Como dissertei no ensaio sobre Liesel, o E4 é tão castrado quanto o próprio E6 (variantes SP e SO). No mesmo sentido, o SP4 depende da autoridade, pois, se o E6 sente uma falta de direito para agir ou manifestar a própria sexualidade, o E4 não vê direito na manifestação oral de seus próprios desejos, necessitando, assim, de uma figura que o permita aquilo que deseja. Fletcher é essa figura. Ele entra na sala abrindo as portas com força. Elas batem contra a parede, fazendo um barulho que atrai olhares, mas ele mesmo não olha para trás. E chega na sala com uma espécie de educação: “Posso?” — ele pergunta. Ele é uma autoridade no lugar e testa todos, julgando-os com completa frieza e rigidez. Não existe qualquer conexão com os membros da banda naquela sala. Fletcher tem um objetivo, uma espécie de “missão social” (mas, por ser SX1, é uma projeção de um desejo emocional raivoso, não uma busca por um ideal de perfeccionismo — SO1), e o que importa é possuir apenas a “nata” dos músicos, mover eles no mundo em busca desse objetivo (Te).

Nas cenas que se seguem após Neiman ser admitido na Studio Band, Fletcher apresenta um perfeccionismo narcisista e um estado de humor oscilante. Ele começa se fingindo de bonzinho, e chega a ter uma “conversa agradável” com Andrew no corredor — o que considero ser apenas uma investigação pelos pontos fracos dele (Te-L) através da emulação de uma figura agradável (Fe-Ct). No entanto, conforme o filme avança, vemos Fletcher torturando seus alunos psicologicamente. Ele sabe onde está o erro, mas é necessário impor a falha no objeto para observar seu potencial para a perfeição — i.e., sua tenacidade. Ele sabe quem está errando a nota, mas pior do que sabotar a banda, é não saber que está errando. Ele expulsa um de seus alunos que não sabia dizer com certeza/firmeza se estava desafinado. Ele sabia que não era ele quem estava desafinado, mas, por não ter certeza disso, ele era tão ruim quanto aquele que errara.

Andrew é partido durante todo o filme. Ele se vê como insuficiente, o que é neuroticamente corrigido através da inveja esforçada. O objeto invejado é um ideal de bondade/qualidade ativa. Então, ele treina até além da falha. Suas mãos sangram, mas ele não pode parar de treinar — afunda os punhos no gelo. Aqui, tratando-se de um E4 SPX, vejo a necessidade de destacar outra característica do E4 geral que não é a apontada por mim na personagem da Liesel. Liesel é alguém castrada, assim como um E6 é. Mas, no caso de Andrew, reparamos não apenas a castração, mas a projeção. Em momento algum ele pensa em abandonar seu sonho, sua originalidade, seu objetivo de vida “apenas” porque Fletcher o humilhou. Não, isso dá vazão à neurose complementar: o esforço. O babaca não é o inimigo, pois ele é a autoridade — “portanto, eu sou o meu maior inimigo, e minha maior traição é não me esforçar o suficiente”, poderíamos traduzir seu pensamento. Andrew não se importa com a opinião dos outros, pois ele segue seu caminho. A única posição importante no mundo ao seu redor é a da autoridade.

Observemos o diálogo entre Andrew e seu pai:

— O que é isso? É de tocar bateria? — Sim. Não é nada. — E como vai a banda? — Acho que ele gosta mais de mim agora. — A opinião deste homem significa muito pra você, não é? — Sim.


Mais adiante, observamos como surge a inveja no âmbito familiar de Andrew durante a cena do jantar. Ele pode confessar a maior de suas conquistas, um esforço que, ele imagina, o fará ser reconhecido — mas este não vale tanto assim para seus familiares. Travis, o jogador, é quem recebe todos os sorrisos e aplausos. Enquanto isso, a família não parece estar em sintonia com os sentimentos de Neiman, muito menos com tópicos tangentes, como seus valores éticos e sua perspectiva autossacrificial de sucesso. E ele observa isso; toda a euforia é dirigida a Travis. Assim nasce a posição da inveja do tenaz. E, como Andrew é um SPX, essa inveja acaba vazando de modo bastante agressivo e destrutivo (extremista até). Além de desdenhar da terceira posição nacional do seu irmão (ig.), Andrew discute o seguinte com seu tio (ig.):

— Você tem algum amigo, Andy? — Não, nunca vi utilidade. — E vai tocar com quem?

[...]

— Prefiro morrer bêbado e pobre aos 34 anos e falarem de mim à mesa a viver rico e sóbrio até os 90 anos e ninguém se lembrar de quem eu fui. — Mas seus amigos falarão! É o que conta! — Ninguém aqui foi amigo de Charlie Parker, esse é o ponto.

N/A: Segundo meu amigo Toth, um cinéfilo, o diretor do filme teria declarado que Andrew realmente morre da forma acima mencionada.


Outro traço do ESI SP4 é uma ideia (muitas vezes equivocada) de que possui a capacidade de determinar aquilo que os outros sentem, aquilo que querem. Para alguns, isso pode ser fonte de grande ansiedade e insegurança existencial, assemelhando-se à ansiedade que o E6 sente diante da existência certa de um «inimigo». Esses traços podem ser designados tanto ao SP4 quanto, especialmente, ao ESI, Eu diria que isso tem a ver com uma relação entre os elementos introtímicos de seu corpo, sendo eles Fi-Ti-Ni-Si, mas também poderia ser um efeito da Se-Criativa. (Tudo isso é apenas especulação da minha parte. Não tenho uma referência para citar atm., senão o puro fato de ser, eu mesmo, um ESI SP4.) Eis abaixo a cena do término de Andrew, que justifica esse traço:

— Eu pensei bem nisso, e vai acontecer o seguinte: vou continuar perseguindo meus objetivos. E isso vai tomar cada vez mais do meu tempo, e não vou poder passar tanto tempo com você. E mesmo com você, vou estar pensando na bateria e no jazz, anotando minhas partituras e tal. E aí você vai começar a se ressentir e me pedir para tocar menos bateria, e ficar mais com você, pois não se sente importante. E eu não vou poder fazer isso. Aí, eu vou me ressentir por ter me pedido isso. E vamos começar a odiar um ao outro — e vai ficar feio. E por tudo isso, prefiro, sabe, terminar logo de uma vez. (...) Porque eu quero ser excelente. — (...) E você não é? — Eu quero ser um dos melhores. — E eu o impediria de conseguir isso? — Sim. — Você sabe que eu o impediria? Tem certeza absoluta disso? — Sim. — E eu já mal vejo você mesmo... E quando eu o visse, me trataria mal por ser só uma garota que não sabe o que quer, enquanto você tem um caminho e vai ser genial, e eu vou ser esquecida. Por isso, não pode me dar atenção, porque tem coisas mais importantes a fazer? — É exatamente o meu ponto. — O que tem de errado com você?!


Às vezes podemos nos esquecer que o E4, bem como o E2, é essencialmente semelhante ao E3: “O que eu sou, senão meu trabalho, minha imagem, meu papel social?” Mas, quando o indivíduo fecha seus olhos e tenta olhar para dentro de si, quando ele deixa de se movimentar para absorver, percebe um vácuo existencial. Existe realmente um conteúdo que define a identidade por trás de toda essa casca da persona? Seria a persona um casulo, ou apenas uma muralha que impede qualquer um, incluindo o próprio indivíduo, de entrar ou sair? A dor de um tipo cardíaco é perceber que nunca existiu um casulo, e sim uma barreira implícita. “Sou aquilo que faço no mundo”, estes pensam, o que leva a um “Eu não sou nada, senão minhas relações com o mundo” — e vejo aqui a necessidade de destacar o uso da palavra «mundo» como mais do que o sistema social humano, passando a circunscrever uma relação geral entre os objetos e seus conteúdos mais intensos e inter-relacionados; a flor é um mundo, assim como faz parte de um, e da mesma forma somos nós, os outros, os gatos, os cavalos, as zebras, os elefantes, a arte, e tudo mais.

N/A: Recomendo ler Bolha nos Corais, do meu livro Ecos do Homomorfo.

Partindo disso, chegamos na apresentação mais importante para Andrew — sua, então, última apresentação como integrante da Studio Band. Tudo deu errado. O pneu de seu ônibus furou. Ele alugou um carro e foi correndo. Chegou atrasado. Recusou ser substituído — e outro detalhe relevante para entender a autodesvalorização invejosa: ele nem sequer tenta justificar o porquê do atraso, pois existe uma projeção da responsabilidade, uma autoexigência e, principalmente, uma introjeção. Repara, então: as baquetas foram esquecidas. Ele grita com Fletcher, pois a ansiedade do vácuo finalmente toma forma após o ponto mais alto ter sido alcançado — “Eu me esforcei o suficiente, e nada vai me impedir agora, nem mesmo a autoridade”, é a mensagem que as cenas parecem transmitir. Voltando do lugar onde havia esquecido as baquetas, ele grita ao telefone, acelera o carro e é atingido por um caminhão. O motorista do caminhão tenta ajudá-lo, mas é como se ele não existisse para Andrew. Andrew, então, pega as baquetas do carro tombado e corre, ensanguentado, murmurando: “Onde é que é?! São só algumas quadras!”

Nas cenas que se seguem, o masoquismo (i.e., o esforço neurótico) é levado ao máximo. Neiman viola os limites de seu próprio corpo e não se importa com nada que qualquer um diz. Ele toca ensanguentado, até que corpo enfim pare de funcionar. [...] Fletcher, obviamente, o expulsa da banda. Durante todo o filme, este é o único ponto em que Andrew está realmente colapsando. As barreiras caem, e o vazio se manifesta projetando a identidade no esforço. Ele pula em cima de Fletcher e nada impede seu ódio. O ódio existe porque Fletcher passa a ser visto como um inimigo em vez de uma autoridade, visto que seu esforço foi suficiente e, portanto, a autoridade deveria se aprazer de tal; no entanto, Fletcher não o faz, então é simples: ele é um inimigo.

As cenas finais do filme dizem muito sobre ambos os personagens. Pessoalmente, elas fomentam minhas características como um SP4 e me fazem refletir sobre o papel social de uma personalidade tão contrária, até ao próprio conceito de «personalidade», como o SX1. O pai de Neiman o leva para testemunhar contra Fletcher no tribunal numa audiência privada. Ele não parece ser impactado pela notícia do suicídio de um dos alunos de Fletcher — que o próprio teria anunciado como sendo vítima de um acidente de carro —, afinal, sua pele emocional é grossa demais, é tenaz. (N/A: Também em mim percebo essa «grossura emocional».) Andrew é incapaz de definir Fletcher como alguma espécie de inimigo. “Ele não fez nada”, diz. A verdade, parece-me, é que, para Neiman, o verdadeiro inimigo, a razão de seu fracasso, é sua própria “fraqueza”. No entanto, ele é levado pelo fluxo da situação de modo letárgico, é «programado» pelas pessoas ao seu redor; quero dizer, ele não tem uma real vontade de punir Fletcher por algo, mas sente uma «dívida emocional» para com seu pai — que, vale o comentário, parece amá-lo mais do que ele próprio se ama, ou mesmo pode imaginar que alguém o ame/poderia amá-lo (acrit.).

Cinco minutos à frente, Andrew vai ao evento JVC, onde Terence estaria como uma presença especial. Andrew observa-o de longe — parece sentir como se não pudesse ser visto à sombra da multidão. Quando o show termina, Terence olha para todos os lados e agradece a plateia. Essa cena é rica de detalhes... Nem mesmo sei dizer se Andrew “se deixou ser visto” por Fletcher ou se apenas se perdeu numa distração, e tanto menos sou capaz de comentar sobre a aparente serenidade de Fletcher ao piano. O que se desenvolve a seguir é uma manipulação através de um comportamento agradável por parte de Fletcher (Fe-Ct). Fletcher tem outra conversa agradável, como aquela que teve com Neiman no corredor, ou então com a filha de seu amigo, a que desejava aprender a tocar piano — ao que Fletcher replica: “Sim, e então tocará na minha banda quando crescer, não é!” Ele parece uma pessoa bem-intencionada “Eu só queria levar as pessoas além do que elas sabiam que poderiam ir.” Comenta que o jazz está morrendo porque as pessoas já não se esforçam o suficiente. Andrew questiona “E se você desmotivar o próximo Charlie Parker?” Ao que Fletcher responde: “O próximo Charlie Parker não seria desmotivado.” (Na mesma cena, ainda, Fletcher comenta sobre a motivação de C. Parker em não errar, em não ser mais motivo de riso. Não a analisarei neste ensaio.)

O final do filme é incrível e faz refletir sobre ambos os personagens. Fletcher busca quebrar Andrew ao máximo fazendo-o tocar com a partitura errada. Ele sai do palco destruído e abraça seu pai, mas se lembra do discurso que Fletcher fez. Ele não vai ser desmotivado, ele vai ser o mais esforçado, vai ser o próximo Charlie Parker. Andrew volta ao palco e torna a tocar. Fletcher se enraivece, mas logo Andrew toma a frente e dá a entrada para toda a banca, para tocar “Caravan”. Andrew está no seu auge, e Fletcher também — ele finalmente conseguiu um Charlie Parker. As cenas são uma experiência única e indescritível. Neiman e Fletcher, juntos, conseguem suprir os desejos mais essenciais um do outro, i.e., uma genialidade histórica e um grande pupilo. No entanto, a grande questão com a qual lido ao final dessa análise é: nossos objetivos realmente valem a pena? Uma referência adicional para refletir sobre isso seria o filme Soul (2020), acredito.

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