O Corvo e o Canarinho — 27.04.24

Se consigo ser um só, é porque vários habitam em mim. Carrego o peso de ser dois, mas nunca ser só um. Sou dois Sísifos: um condenado à leveza do balão, outro com ao fardo da individuação; um despenca, mas o outro nunca desce. Um não consegue ver, outro não consegue ouvir. Um é catapultado de volta para cima sempre que tenta saltar do paraíso para se lançar ao conhecimento do inferno; o outro, despenca sempre que tenta escalar as paredes do inferno lamacento. E as garras não bastam para se segurar. Não tem oito pernas, mas tem veneno; e escorrega pela muralha rabiscada, vítima do fluxo das próprias lágrimas e do próprio sangue.

Entre eu e mim mesmo, sempre existirá algo que me impedirá. É como viver um amor cortado por uma muralha eterna. Ambas as partes de mim estão divididas por algo que nos impede fundir em completude. O casamento do ser parece uma ilusão, e a verdade da vida parece um divórcio comigo mesmo desde o nascimento. Somos partidos em tantas partes… E, mesmo nos unindo caco a caco, nunca conseguimos passar para o outro lado… O peixe nunca voa, e o pássaro nunca nada.

Um dos condenados não vê a beleza do paraíso, e o outro, não é capaz de escutar as verdades do próprio abismo. Existe, então, uma criança insatisfeita com as maravilhas de um mundo, pois é incapaz de conhecer a si mesma. E do outro lado, um adulto cansado de conhecer as próprias verdades sem nunca ser capaz de alcançar o mundo. Entre céu e inferno, abismo e paraíso, nenhum dos dois habita o jardim. Um sente-se culpado por comer o fruto do pecado do conhecimento; o outro, é covarde demais para fazê-lo. Um não respeita seu criador e deseja independência; o outro, permanece castrado por trás da barra da calça do pai.

E uma inveja nasce sem que nenhum dos dois perceba: Do fundo do abismo, o escuro lacrimeja, almejando e imaginando a beleza e a perfeição do céu estreito que observa pela rachadura. Do alto do céu, sentado à margem das nuvens com os pés para fora, como se senta num muro, o iluminado sente a profunda carência de algo interno a si. Vive em agonia, mesmo rodeado pela pureza e pela bondade — mas sempre deseja pular.

Prisão não tem cor e prisão não tem formato. Uns estão presos no marfim, outros presos no fluxo do ar. Alguns estão afogados, e outros estão em chamas. Uns sentem falta de si mesmos… Outros, sentem falta dos outros. Mas, no fim, algo parece sempre puxá-los de volta para o útero ao qual pertencem.

Um ouve uma melodia complexa, mas monótona. Outro, canta consigo um lamento em voz sem contento. Canta baixinho, como uma criança com medo. Um não sente a energia da melodia, e o outro, não sente o calor da letra. É porque nunca conseguiram dançar e se fundir. E, sozinhos, nunca escutaram a música do próprio ser. Estão sempre quase completos, quase perto de ser algo. Mas falta um equilíbrio, falta a confiança, falta a coragem, a esperança. A perseverança, a humildade… A verdade. Um tem a vitrola, e o outro o disco; mas um teme ser arranhado, e o outro ser encontrado.

Festa vazia; sem música e com fantasia. Um no terno branco, e outro no preto… sem refletir a cor da verdade para iluminar o salão marrom, a cor de lamento.

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