Madrugada Flambada — 15.05.24

Oh, madrugada, como és solitária... Mas, mais do que tudo, és-me identitária. Fazes com que eu saia — em vez de me retrair —, de mim, do mar... sentir: que eu posso deixar de ser de onde vim, e — enfim — passe a me amar. Fazes — oh, tu! — com que eu possa imaginar; sentir, respirar; admitir, admirar... Questionar? Contra mim mesmo argumentar — até, por fim, aflorar.

Oh, madrugada, como me fascina! Em ti, dentro de mim mesmo, faço uma chacina (de tudo o que me abomina). Me enriqueço! Desse sangue, dessa tinta; salva-me do mangue e permite-me: "que sinta!" — mas adverte: "não minta."

Oh, madrugada! Talvez, tenha nascido para o teu frio — e, quando toda a cidade dormiu, nunca um céu tão lindo meu ente — corpo — viu. No teu seio, chorei — e ninguém ouviu. E amei então a mim sem receio... mas o mundo foi demasiado vil. Enfrentando ódio e anseio, pude ter um novo Abril.

Madrugada, oh, doce madrugada! Ao olhar em teu rosto, meu espírito ebuliu; fiquei febril — quando vi posto, em teu rosto fosco, um apagão tão gentil. Tomastes meu barulho e expulsastes meu orgulho. Não mais em lágrimas me debulho, mas em teu silêncio me vejo puro. Lágrimas de sangue mancharam-me o instante, fizeram-me cair em Dante — por muito tempo incapaz, até, de seguir adiante.

Oh, madrugada!... Tu és, de relance, minha estante — desperta-me um transe de dez prazeres abundantes. És minha amante — não ficante —, e não te quero só por um instante; não! Quero-te de ontem em diante.

Oh, madrugada... Vi, agora, que tens muitos amigos... Salvaste-nos dos perigos e fostes nosso abrigo. Separou-me do joio — o trigo. Acho que não consigo, não posso — não mais — dormir contigo. Em verdade, somos contíguos.

Escrito numa madrugada encantada — por muito mais que um amigo ou um camarada.

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